RESIDÊNCIA SÓSTHENIS SILVA
Geraldino Duda
DIMENSÃO NORMATIVA
Durante muitos anos, a casa se manteve como um dos símbolos da modernidade arquitetônica campinense, havendo inclusive, sido solicitado seu tombamento ao IPHAEP/Governo estadual - através de requerimento dos cursos de arquitetura e urbanismo da UFCG e da Unifacisa de Campina Grande, em 2010.
Tal solicitação foi motivada pelo risco de demolição que a obra, um dos símbolos da modernidade campinense, corria, causado pelo acelerado processo de especulação imobiliária do bairro Centro. Seu valor arquitetônico como exemplar da produção da chamada Escola do Recife, com linguagem moderna- era um dos pontos fortes de seu tombamento.
Em setembro de 2010, o coordenador de arquitetura e ecologia do Iphaep (2010), arquiteto Raglan Rodrigues Gondim, solicitava urgência no processo de cadastramento para proteção do bem, alegando riscos de demolição, e indicava o arquiteto Cristiano Rolim, como parecerista junto ao COMPEC/ IPHAEP. Em parecer emitido em 10 de novembro de 2010, associado ao processo de tombamento encaminhado ao IPHAEP (0344/2010), o arquiteto João Cristiano Rolim, que representava o CREA/PB no COMPEC, solicita tal proteção legal, alegando que:
"Agravado pela eminente ameaça de demolição do bem pelo acelerado processo de desenvolvimento dessa região da cidade de Campina Grande, pela representatividade da edificação que muito bem reflete a identidade cultural da sociedade campinense em um momento de expansão urbana da cidade, pela representatividade da obra do arquiteto augusto Reynaldo que tem sido objeto de estudos acadêmicos, pelo elevado valor arquitetônico, histórico e cultural da edificação, sou favorável ao tombamento de bem conservado, exemplar modernista por esse instituto". (ROLIM, 2010, p.2)
A casa em 2010 ainda estava “íntegra e original em sua estrutura formal, espacial e estrutural”, conforme consta no parecer de Rolim (2010, p.2). Mas, da deliberação para o cadastramento da obra como bem a ser tombado, ocorrida em novembro de 2010 até março de 2017, o processo se arrastou no IPHAEP e não entrou no rol dos bens devidamente protegidos pela Lei.
Aproveitando-se de tal fato, o proprietário ordenou a demolição do bem em 2017, que não podia legalmente ser demolido, pois como vimos, estava em processo de tombamento. O triste fato, é que hoje, o que ali existe, é um terreno vazio que em breve abrigará um edifício. E o órgão preservacionista nada fez, juntamente com os diversos atores envolvidos no processo de preservação.
DIMENSÃO HISTÓRICA
A casa foi encomendada por uma família de classe média alta em 1957, e pertencia ao comerciante Raimundo Alves, que anos depois, a vendeu para a família Vieira e Silva.
No arquivo municipal, segundo escreveu Almeida (2010, p.123) o projeto não foi encontrado, e as informações que se obteve foram prestadas por familiares do arquiteto Augusto Reynaldo, como o trabalho desenvolvido por sua neta, a arquiteta Mariana Alves (2008) que em sua monografia final de graduação, no curso de arquitetura e urbanismo da UFPE, fez o resgate produção de seu avô, incluindo nesta, as residências projetadas em Campina Grande.
A residência foi cenário da forma de viver da alta sociedade campinense, com espaços destinados à vida social no pavimento térreo, com área de apoio para festas e reuniões, com um belo jardim, que proporcionava um diálogo entre exterior e interior.
DIMENSÃO ESPACIAL
A casa que estava localizada no bairro Centro, na Rua Raimundo Alves da Silva, 190, foi construída na área central de um terreno com grandes dimensões, estando solta em relação aos recuos do lote. Foi implantada na área mais alta do terreno, aproximadamente a uns 2m em relação ao nível da rua, possuindo muros baixos, o que proporcionava um grande campo de visão da casa em relação à rua. O extenso recuo frontal foi utilizado como jardim definido por canteiros com formas livres possuindo também um lago artificial.
O muro recebeu um tratamento diferenciado com uma mistura de alvenaria e pedra natural. A partir dele, era realizado o acesso para automóveis com dois portões: um para a entrada do veículo e o outro para saída, esta disposição evitava a necessidade de manobrar o carro. O acesso do pedestre se dava por um portão pequeno conduzindo a um passeio sinuoso até a entrada social da casa.
A distribuição do programa foi realizada em dois pavimentos, de maneira bastante racional e setorizada, utilizando-se a planta em formato de “U”. No pavimento térreo estavam localizados a área de lazer, garagem, saleta e serviço. Além destes, havia ainda o pilotis onde se encontrava a escada com forma curva que permitia o acesso ao piso do pavimento superior.
No pavimento superior se encontravam a área íntima, setor social e parte dos serviços. Os quartos foram dispostos na parte leste e possuíam também, varanda e banheiro. As salas também tinham varanda e terraços, tendo a permeabilidade visual garantida pela ausência de divisórias e presença de grandes esquadrias de vidro e de venezianas.
Observou-se na solução da planta, a distribuição de três suítes com varandas, e um quarto de hóspede com acesso independente, através de uma escada que o interligava com o pavimento térreo.
DIMENSÃO TECTÔNICA
Quanto à análise construtiva da casa, pode-se observar o uso da estrutura em concreto armado, empregado nas vigas, pilares e lajes, que ficam à mostra na solução formal da obra. Um volume trapezoidal, possuindo teto em “asas de borboletas” com vigas inclinadas, se apoiam em um volume trabalhado com cheios e vazios, em composição com os pilotis.
Para as peles, foram empregados planos de brises soleils de concreto fixo, painéis de madeira e ferro, cobogós, venezianas de madeira, e panos de vidro, que através de proporções muito bem estudadas, criaram uma leveza volumétrica, demonstrando também, uma atenção especial do arquiteto às soluções climáticas, apesar do uso de panos de vidro voltados ao poente, questão que foi tratada tanto por Queiroz e Rocha (2006), quanto por Almeida (2010), que acreditavam ter sido uma solução adotada para promover iluminação para os ambientes internos, uma vez que a planta possuía o formato de “U”, ou mesmo, por tentar gerar um aquecimento dos ambientes, já que Campina Grande em determinadas épocas do ano, possui temperaturas mais amenas.
Quanto aos revestimentos da obra, despertou interesse a riqueza de materiais ali existentes, como pedras, azulejos decorados, e pastilhas. Foi feito ainda um jogo de cores de pedras cerâmicas na cor telha com azul, contrapondo com a cor bege empregado nos revestimentos das fachadas, valorizando a forma da volumetria.
O jogo dos revestimentos era tão bem equilibrado, que mesmo com a diversidade dos materiais de revestimento utilizados, a obra permaneceu elegante.
DIMENSÃO FUNCIONAL
Projetada originalmente para abrigar uma residência de alto padrão nos anos 50, ao perder sua função enquanto residência, passou a ser alugada para fins de serviços, dando início à sua deterioração.
Enquanto residência era um exemplo de funcionalidade moderna, trabalhando com setores social, íntimo, de serviços e de apoio, muito bem delimitados, com acessos independentes, mas fluxos interligados que permitiam um excelente funcionalmente do espaço doméstico.
Durante anos foi sendo alugada para diferentes usos, como por exemplo, um escritório de advocacia, que veio a ser o último uso do imóvel, que em seguida foi demolido.
DIMENSÃO DA CONSERVAÇÃO
Como afirma Alves (2008), era inegável a qualidade arquitetônica da residência de Vieira e Silva. Foi até março de 2017, um dos mais importantes exemplares em bom estado de conservação da habitação moderna campinense, projeto que se destacava dentre as demais residências da cidade quanto à soluções espaciais, uso dos materiais e detalhes construtivos.
Conforme foi visto, na dimensão normativa, a residência estava em processo de tombamento pelo IPHAN/Governo estadual, quando em um sábado à noite, foi demolida.
No dia 10 de abril de 2017, o IAB/PB (Instituto de Arquitetos do Brasil, seção Paraíba) realizou um debate com título “Obituário campinense: vulnerabilidade do patrimônio cultural” para discutir o caso da demolição indevida do imóvel, e contou com a presença da professora Dra. Alcilia Afonso, representante do curso de arquitetura e urbanismo da UFCG; Eng. André Agra, então secretário de planejamento da Prefeitura Municipal de Campina Grande; da diretora do IPHAEP, a historiadora Cassandra Figueiredo; do representante do CAU/ PB, Arquiteto Cristiano Rolim; do professor da UNIFACISA, Raglan Gondim, e do advogado Péricles Medeiros. A discussão tratava sobre a ilegalidade do fato ocorrido e as consequências que deveriam ser tomadas por tal ato. Infelizmente, nada aconteceu, apesar das tentativas de exigir uma punição pela perda indevida.
Afonso (2017) analisou a preservação de bens modernos no nordeste brasileiro, e observou o reflexo de um processo de descaso com os bens culturais nacionais, que vem ocorrendo em todo o país, principalmente, quando se trata do patrimônio residencial moderno, que pessoas destroem, descaracterizam, sem considerar o valor histórico, de antiguidade, de autenticidade, sem respeitar leis, trâmites processuais, desejo popular: a tudo destroem em busca da possibilidade de se obter “mais lucros”.
O cenário da preservação arquitetônica brasileira está um caos: não se obedecem às leis, não há uma política pública eficiente e ágil, não existe fiscalização e todos nós, cidadãos, professores, arquitetos, pesquisadores, nos sentimos - como sempre - impotentes perante o quadro.
Convoca-se aqui, os órgãos responsáveis a discutirem o problema que é grave, e procurar caminhos mais eficazes para estancar esse comportamento. Vivemos sentindo “pena da perda”, mas que medidas duras são destinadas a esse tipo de comportamento em relação à preservação do patrimônio ambiental e construído?
UMA FORMA DE RESGATAR A OBRA
a reconstrução virtual. Como maneira de se resgatar a obra, foi realizado um trabalho de modelagem virtual por membros do Grupal/ UFCG, Diego Diniz e Julia Leite (AFONSO, CLAUDINO, LEITE, 2017), apropriando-se dessa ferramenta para reconstrução da edificação, com o qual procurou-se compatibilizar o patrimônio edificado original através de desenhos arquitetônicos, com croquis, fotos e relatos orais. Construindo assim, um acervo digital que sirva como subsídio para novas pesquisas, registros e divulgação.
Foi realizado o processo de elaboração de modelagem geométrica tridimensional por meio de ferramentas gráficas 3D. O primeiro passo foi pesquisar nos arquivos da Prefeitura, o projeto original para que após isso, fossem feitas os redesenhos das pranchas técnicas (com plantas, cortes e fachadas), porém ele não foi encontrado, fato que já ocorreu com outros pesquisadores, como escreveu Almeida (2010, p.104).
Diante desse fato, reconhecendo a importância de fazer esse registro da residência Vieira e Silva, foi utilizada apenas uma planta baixa dos pavimentos térreo e superior, produzida por Alves (2008, p.109), fotos do grupo de pesquisa e auxílio do Google Street View (o qual permite visualizar detalhes que não constam em fotografias). Mesmo não atingindo precisão de detalhes e proporções exatas, por falta de planta baixa com especificações e cota, além de cortes e detalhes construtivos, buscou-se representar de modo mais autêntico possível com o material disponível, produzindo a volumetria que aqui se divulga.
CONCLUSÃO
Durante o processo de pesquisa da residência Vieira e Silva destacaram-se as dificuldades da preservação do patrimônio construído em Campina Grande-PB, o que também vem ocorrendo no Brasil. Acarretando constantes demolições do pouco que ainda se tem da arquitetura moderna, principalmente residencial, já que o processo ao qual são submetidas para tombamento é demorado, e isso somente quando são listados por algum departamento de patrimônio histórico.
Assim como essa residência, que possui grande carga histórica e cultural, existem outras que também são de grande importância na construção da memória da cidade e que, lamentavelmente, nem constam em algum inventário de bens a serem preservados.
Como foi constatado nessa residência projetada por Augusto Reynaldo, também ocorre um grande descaso com os documentos que deveriam ser mantidos em bom estado de conservação, esses muitas vezes se perdem em meio à desorganização dos órgãos responsáveis pela manutenção deles.
O remanescente, que ainda se encontra nos arquivos públicos, quando não incompletos, está em estado de deterioração, contendo manchas e rasgos. Sendo assim, não se pode ter certeza quanto ao futuro desses arquivos.
Desse modo, por meio da representação gráfica tridimensional e da digitalização em software CAD dos desenhos técnicos, vê-se um possível meio para salvaguardar o acervo arquitetônico moderno por meio da documentação e divulgação do patrimônio, uma vez que a preservação do bem material requer um conjunto de fatores burocráticos relacionado ao poder público e instituições de preservação, além da consciência da sociedade e dos proprietários do imóvel.
Esse processo de “reconstrução” virtual possibilita a criação de um acervo digital que pode ser utilizado para futuros estudos acadêmicos, assim como resgatar a memória do imóvel. Além disso, é um importante meio para catalogar a produção de arquitetos modernos pouco conhecidos e estudados.
REFERÊNCIAS
AFONSO, A. La Consolidación de la arquitectura moderna en Recife en los años 50. 752f. (Tese de Doutorado). Programa de Pós-Graduação em Projetos Arquitetônicos. Escuela Técnica Superior de Arquitectura de Barcelona. Universitat Politècnica de Catalunya, 2006.
AFONSO, Alcilia. Notas sobre métodos para a pesquisa arquitetônica patrimonial. Revista Projetar. Projeto e percepção do ambiente. Natal: Editora da UFRN. V.4 Nº3. pp 54-71. Dezembro de 2019.
AFONSO, A.; CLAUDINO, D.; LEITE, J. Ferramentas de representação gráfica e seu papel na salvaguarda do legado arquitetônico moderno. O caso de Campina Grande-PB. 5º Encontro Internacional Arquimemória. Salvador: 2017.
AFONSO, A. O triste fim do patrimônio arquitetônico moderno e as políticas preservacionistas no nordeste brasileiro na contemporaneidade. Reflexões sobre alguns estudos de caso. Belo Horizonte: Simpósio científico do Icomos Brasil. 2017.
ALMEIDA, L. Modernização e Modernidade: uma leitura sobre a arquitetura moderna de Campina Grande-PB. 204 f. Dissertação de Mestrado – PPGAU, Escola de Engenharia de São Carlos da Universidade de São Paulo, 2010.
ALVES, M. R. Augusto Reynaldo: resgate de uma obra. Recife, 2008. Monografia (Graduação em Arquitetura e Urbanismo) – CAC/UFPE
IPHAEP/ Instituto de Patrimonio Histórico e Artístico do Estado da Paraíba. Processo de Tombamento da Residência Vieira e Silva. Número 0344/2010. João Pessoa. 2010.
QUEIROZ, M., ROCHA, F. Caminhos da arquitetura moderna em Campina Grande: emergência, difusão e a produção dos anos 1950. Recife: 1° Seminário DOCOMOMO Norte-Nordeste. 2006.
ROLIM, C. Parecer técnico para o COMPEC/IPHAEP processo 0344/2010. João Pessoa: IPHAEP. 2010.